"Feliz Páscoa aos que desdobram a subjetividade,
rompendo a casca do ego para deixar renascer
a mulher ou o homem novo,
e a quem se nutre de TV sem enxergar as maravilhas
encerradas no próprio peito.
Feliz Páscoa aos artífices da paz que, entre conflitos,
exalam suavidade, não achibatam
com a língua a fama alheia, nem naufragam
nas próprias feridas.
E aos emotivos que deixam escapar das mãos
as rédeas da paciência
e nunca abandonam as esporas da ansiedade.
Feliz Páscoa aos que tecem com o olhar
o perfil da alma e, no silêncio dos toques,
curam a pele de toda aspereza.
E aos amantes tragados pelo ritmo incessante
de trabalho, carentes de carícias,
que postergam para o futuro o presente
que nunca se dão.
Feliz Páscoa a quem acredita ser o ovo portador
de vida,
sem que a fé exija que o quebre,
e aos incrédulos e a todos que jamais dobraram
os joelhos diante do mistério divino.
Feliz Páscoa aos que identificam as trilhas
aventurosas da vida mapeadas na geografia
de suas rugas e não se envergonham da topografia
disforme de seus corpos.
E a todos aqueles que, robotizados pela moda,
se revestem de estátuas gregas carcomidas pela anorexia,
sem se dar conta de que a mente mente.
Feliz Páscoa aos que ousam ser gentis e doces,
sem pudor de abraçar o menino
que carregam dentro de si.
E aos afoitos, competitivos, turbinados
e sarados,
enamorados da própria vaidade,
incapazes de suportar uma fila de espera.
Feliz Páscoa aos que sabem amarrar o seu burrico
à sombra da sabedoria e jamais negociam
a felicidade em troca de uma arroba de milho que,
vista à distância, parece pepita de ouro.
E aos idólatras do dinheiro, fiéis devotos
dos oráculos do mercado, reféns de pobres desejos
que, saciados de supérfluos,
nunca alcançam o essencial.
Feliz Páscoa a quem abre caminhos com
os próprios
passos e cultiva em seus jardins
a rosa dos ventos.
E aos que colhem borboletas ao alvorecer
e sabem que a beleza é filha do silêncio.
Feliz Páscoa aos que garimpam utopias nos campos
da miséria e trazem seus corações prenhes
de indignação,
sem jamais olvidar
o próximo como seu semelhante.
E aos que, montados na indiferença,
atropelam delicadezas, até
que a dor lhes abra a porta do amor.
Feliz Páscoa aos que nunca fecham a janela
ao horizonte,
regam suas raízes
e não temem pisar descalços a terra
em que nasceram.
E aos que se embriagam de chuvas,
ofertam luas à namorada
e fazem da poesia a sua lógica.
Feliz Páscoa aos colecionadores de araucárias,
que enfeitam de sonhos suas florestas e, na primavera,
colhem frutos de plenitude.
E aos que brincam de amarelinha ao entardecer
e desconfiam dos adultos exilados da alegria.
Feliz Páscoa aos que se repartem nas esquinas,
distribuem aos passantes moedas de sol
e, nada tendo, nada temem.
E aos que, ao desjejum, abrem sua caixa de mágoas
e recontam uma a uma, gravando nos cadernos
do afeto dívidas e juros.
Feliz Páscoa aos que caminham sobre tatames
e, por terem muita pressa de chegar, jamais correm.
E aos navegadores solitários, pilotos cegos
e peregrinos mancos, que se arrastam
pelas trilhas da desesperança.
Feliz Páscoa aos políticos obrigados a inventar,
para os outros, o futuro que não se deram no passado,
e estendem sorrisos para mendigar votos.
E aos que não se deixam iludir pela insipidez
da política e nem atiram seus votos na lixeira do
desinteresse, alimentando ratos.
Feliz Páscoa aos trovadores de esperanças,
aos fazendeiros do ar e aos banqueiros
da generosidade, que sabem tirar água do próprio poço.
E aos que mantêm em cada esquina,
oficinas de conserto do mundo,
mas desconhecem as ferramentas
que arrancam as dobradiças do egoísmo.
Feliz Páscoa a quem sequestra o melhor de si,
escondendo-o nas cavernas de suas mesquinhas
ambições, sem coragem de pagar
o resgate da humildade.
E aos que nunca banem do espírito a presença
de Deus e fazem da vida uma oração.
Feliz Páscoa às bailarinas fantasiadas de anjos
que sobem, na ponta dos pés, a curva policrômica
do arco-íris, e aos palhaços ovacionados
que, no camarim, se miram tristes no espelho,
vazios da euforia que provocam.
Feliz Páscoa aos que descobrem Deus escondido
numa compota de figos em calda ou no vaga-lume
que risca um ponto de luz na noite desestrelada.
E aos que aprendem a morrer, todos os dias,
para os apegos de desimportância
e, livres e leves, alçam voo rumo ao oceano
da transcendência".
Frei Beto
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